2 de fevereiro de 2012

A Vida Secreta

Não mais, mas isso quer dizer muita coisa. Até o porquê de pronunciá-lo: “Não mais”. Não mais é o tempo que ele passa a escrever enquanto a chuva cai lá fora e um e outro correm para fugir dos pingos; e ele, da sua janela, observa desde o início da formação da nuvem pesada até o instante em que os pingos começam a cair. Não mais; e ele vê, com olhar atento, pessoas se esbarrando e cobrindo a cabeça com um objeto qualquer que está à mão no momento em que a enxurrada de água cai do céu. Outros que abandonam o cigarro quase à metade na poça d'água para não ter um pé de receber respingo no rosto. “Não adianta”, ele pensa. “Vai se molhar de qualquer jeito”, vocifera da sua janela.


Não mais, ninguém o está ouvindo. Estão todos absortos e presos à nuvem de chuva; só ele, solitário, observa da janela, olhar atento, barba por fazer, cabelos compridos, sem camisa; só ele observa para ter o quê de recriar imagens mais tarde junto à sua escrivaninha ao lado da cama. Não mais, pode ser sintoma de cansaço. Buzinas que tocam, carros que passam, pés que correm. Água e urbanização. Urbanização e água: uma combinação indicada por seu mindinho detalhista e desejoso por criticar qualquer coisa. Tudo enquadrado; “daria até para fazer um filme”, ele imagina todas as cenas e os tipos de planos que deveria utilizar. Não mais é a atenção aos fatos e a recriação deles porque, dependendo de como se faça, ninguém vai absorver a proposta depois da projeção. Não mais é o tempo que ele passa a imaginar coisas para transformar em fatos concretos e precisos: algo realmente aproveitável por outrem.

Não mais é ele; é a janela de sua casa que sucumbe a todos os transeuntes lá embaixo: aos cigarros, às poças d'água. Ao tempo. Não mais é o tempo de tédio e tolice que ele insiste em conservar para viver a vida dos outros que, segundo consta nas prateleiras de sua casa, nem mesmo um "oi" lhe pronunciou. E todos os pratos e talheres estão de prova no caso, nenhum sequer foi mexido ou remexido. E a vitrola que agora toca uma música fúnebre: "É diferente", ele diz que gosta. Nenhum daqueles transeuntes lá embaixo sequer o visitaram. Ninguém para ouvir suas histórias. Histórias que secumbem ao tempo... Tempo que corrói as roupas e a sua câmera de registro diário. "Não mais", ele pensa e resolve sair da janela; da casa; das mobílias; da chuva; do cigarro; da música fúnebre; da sua vida. Não mais, porque ele se foi. Um, dois, três. Shhh. Silêncio. E o tempo dará conta de tudo, aos poucos. Não mais à vida secreta.

Um comentário:

Você pode dizer muito ou quase nada; pode apenas fincar as suas unhas e aranhar a minha janela ou derrubar as cortinas, não tem problema: mostre que você está vivo! Obrigada por estar aqui!