5 de junho de 2012

Chandler, 1929

Ilustração: Alesson Felipe
Minha pequena, em alguns jogos, as palavras são peças de ouro; em um jogo de blefe, por exemplo, o que perdura são os gestos, a estratégia de ação determina o resultado da aposta. Por isso tenha muito cuidado: as palavras pronunciadas têm muito poder e as escritas, também. Ele costumava falar assim, como se estivesse reproduzindo um sermão, toda vez que nos encontrávamos no banco da praça da rua Chandler, nas tardes frias de inverno. Não fosse por esses pequenos encontros, minha cultura se resumiria ao crochê e aos chás na casa das amigas de minha mãe.


Ele era alto, esguio e jovem o suficiente para não saber nada sobre a vida. Ao contrário, falava com pronúncia redonda e mexia muito os dedos quando contrariado e citava autores para exemplificar o seu pensamento. Às vezes, ele arregalava os olhos e falava em diversas líguas e dizia que só os livros seriam capazes de detê-lo, nenhuma outra forma de vida ou coisa barrariam o seu pensamento. E falava: "Pequena, é nos livros que você encontra apoio para as suas convicções, é nos livros que a vida ganha sentido". E eu me perguntava que sentido era esse de que ele tanto falava; afinal, em 1929, eu estava no começo da minha adolescência e era alheia a tudo o que se dizia sentido. Eu era tão alheia que um dia cheguei e me perguntar por que todas aquelas pessoas estavam sofrendo e indo às ruas protestar por algo sem sentido, eles nunca ganhariam nada, estavam perdendo tempo. Por que levantavam a bandeira daquele jeito?

Em algum momento devo  ter pensado em voz alta porque ele respondeu com voz embargada e olhar triste que nós, a humanidade, estávamos passando por momentos difíceis e que, no mundo, existiam pessoas que não tinham como sobreviver nos dias chuvosos: aquele ano estava sendo chamado de "a grande depressão". Uma lágrima escorreu dos seus olhos e ele continuou a falar e disse que seus mestres eram Marx e Engels e que suas convicções eram muito fortes para serem abandonadas. Sabe, estamos em 1929, é um momento de grande crise, aqueles que tinham pouco, já não tem mais nada. Você sabe o que isso significa? Atônita, eu disse que não. Nesse ínterim ouvi a voz de minha mãe e nunca mais o encontrei.

Um comentário:

Você pode dizer muito ou quase nada; pode apenas fincar as suas unhas e aranhar a minha janela ou derrubar as cortinas, não tem problema: mostre que você está vivo! Obrigada por estar aqui!